sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

HAITI

A propósito do Haiti, lembrei-me de Guerra Junqueiro:


O meio-dia bateu já na torre da Igreja.
A aldeia é silenciosa e triste. O Sol flameja.
Entre o surdo murmúrio abrasador da luz,
Como um grande forno, os grandes montes nus
Recozem-se, espirrando as urzes d'entre as fragas.
Um mendigo demente e coberto de chagas
Dorme estirado ao sol num modorra espessa;
E o mosqueteiro febril nas lepras da cabeça
Enterra-lhe zumbindo o cáustico das lanças,
Andam só pela rua os porcos e as crianças,
Fome, desolação, luto, viuvez, miséria
Na aldeia morta. A terra esquálida e funérea,
Em lugar das canções da abundância e do amor,
Do trigo verde a rir dentro da sebe em flor,
Calcinada e cruel cospe violentamente
Só o cardo torcido, epiléptico, ardente,
Rompendo duro e hostil, como a praga blasfema
Dum assassino quando um carcereiro o algema,
Secaram-se de todo as fontes e os regatos.
As cobras na aridez crepitante dos matos
Silvam. O ar carboniza as árvores sequiosas
Numa rútila poeira intensa de ventosas.
Dos montes nus além nas secas epidermes
Os rebanhos são como um pulular de vermes.
E a abóbada do céu, concha de zinco em brasa,
Onde não passa a nódoa aérea duma asa,
Implacável contempla a terra solitária,
Como um sultão fitando a carcaça dum pária!


Tirado de "A Velhice do Padre Eterno" ( Com um estudo de Camilo Castelo Branco.)

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